Ler com olhos de ler

by | 8 de Maio de 2024 | Pelo Mundo

Imagem: um «cablecar» em São Francisco, Adobe

«Do lugar elevado que ocupava, Passepartout observava com curiosidade a grande cidade americana: ruas largas, casas baixas bem alinhadas, igrejas e templos de um gótico anglo-saxónico, docas imensas, armazéns do tamanho de palácios, uns de madeira, outros de tijolos; nas ruas, inúmeros veículos, autocarros, elétricos; e, nos passeios repletos de gente, não só americanos e europeus mas também chineses e indianos – o suficiente para compor uma população de mais de 200 mil habitantes.»

Esta poderia ser a descrição de uma cidade actual ou do século XX. No entanto, trata-se da visão da cidade de São Francisco por Passepartout, o criado do fleumático Phileas Fogg, herói d’A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne, no dia 3 de Dezembro de 1872 (ou talvez mais um dia, menos um dia…), conforme traduzida na 3ª edição Fábula, 20|20 Editora, de 2021.

Passepartou, provavelmente, não estaria a admirar «autocarros», e os «eléctricos» apenas viriam a entrar em circulação na cidade de São Francisco no dia 27 de Abril de 1892 – quase vinte anos após a visita de Phileas Fogg e o seu fiel companheiro de viagem –, tendo co-existido com os «cablecars», os famosos veículos de transporte colectivo, movidos por cabos colocados no subsolo, bem típicos daquela urbe californiana.1

Seriam então «cablecars» que Passepartout observava? Também parece que não. A viagem inaugural destes teve lugar no dia 2 de Agosto de 1873 – os nossos apressados viajantes haviam já passado pela cidade oito meses antes –, com os serviços regulares a começarem quase um mês depois, no dia 1 de Setembro.2

Ao observar com atenção as datas e o original no final deste texto, verificamos que Passepartout referia-se ao que nós por cá chamávamos de «americanos»; um veículo sobre carris, semelhante ao que viria a ser um eléctrico, puxado por cavalos.

um «americano» na zona do Carmo, no Porto
Emílio Biel, um «americano« no Porto, na zona do Carmo, Arquivo Municipal do Porto, PT-CMP-AM/PRI/EBC/F.NP:1-EB:11:1 https://gisaweb.cm-porto.pt/units-of…/documents/258140/ A cidade nortenha viria a inaugurar a tracção eléctrica em 1895, sendo pioneira deste meio de transporte na Península Ibérica.3

Quanto aos «autocarros», o curioso e fiel criado francês estava perante aquilo que referiu como «omnibus». Estes, comuns nas grandes cidades Europeias e Americanas no século XIX, eram igualmente veículos puxados por equídeos, capazes de realizar serviços de transporte público e regular, embora não circulassem por carris. O termo surge frequentemente na obra de Eça de Queirós, contemporâneo de Júlio Verne.

O seu nome, que em Latim significa «para todos», veio dar origem a «ónibus», sendo hoje comum como «ônibus» no Português do Brasil, ou ainda como contracção «bus», em Língua Inglesa. Corresponde presentemente, sim, a «autocarro», veículo com motor para transporte colectivo, mas seria um anacronismo aparecer com este significado numa descrição de São Francisco na década de 1870 que se pretendia fiel, pese embora conheçamos as tendências futuristas de Júlio Verne.

Apesar de a referida tradução desejar algo mais ousado, Júlio Verne não deixou estes pormenores de lado e manteve-se rigoroso.

Eis o excerto original:

«De la place élevée qu’il occupait, Passepartout observait avec curiosité la grande ville américaine: larges rues, maisons basses bien alignées, églises et temples d’un gothique anglo-saxon, docks immenses, entrepôts comme des palais, les uns en bois, les autres en briques; dans les rues, voitures nombreuses, omnibus, “cars” de tramways, et sur les trottoirs encombrés, non seulement des Américains et des Européens, mais aussi des Chinois et des Indiens, – enfin de quoi composer une population de plus de deux cent mille habitants.»

Referências
  1. Walter Rice, Emiliano Echeverria, San Francisco’s Pioneer Electric Railway San Francisco & San Mateo Railway Company, San Francisco: The Museum of The City of San Francisco, Disponível em http://www.sfmuseum.org/hist10/sf&sm.html ↩︎
  2. Robert Callwell, Walter E. Rice (2005), Of Cables and Grips: The Cable Cars of San Francisco (2nd Ed.), San Francisco: Friends of the Cable Car Museum, Disponível em https://www.cable-car-guy.com/html/ccocg.html ↩︎
  3. Primeiro carro eléctrico no país e na Península Ibérica fez 110 anos, Disponível em https://www.rtp.pt/…/primeiro-carro-electrico-no-pais-e… ↩︎
Electroconvulsivoterapia (ECT)

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A ECT consiste na estimulação eléctrica do cérebro, de forma a produzir uma convulsão, e promover alterações que melhorem a qualidade de vida do paciente, através do reequilíbrio de algumas funções neuroquímicas.

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Quem seria o responsável? De onde viria o fumo? Apenas eram visíveis prédios que se sobrepunham, e algumas árvores de um parque.

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